A história de uma toxina estética e mortal.
Justinus Andreas Christian Kerner (18/09/1786 – 21/02/1862),
natural de Württemberg, Alemanha, médico psiquiatra e cientista, estudou a
doença chamada botulismo de 1817 a 1822. Kerner foi o primeiro a fazer uma
descrição detalhada do botulismo, sendo ainda o precursor das aplicações
terapêuticas da toxina botulínica, experimentando em diversos animais, e em si
próprio, os seus efeitos. Em 1822, Kerner publicou 155 relatos de caso de
pacientes com botulismo e escreveu uma monografia completa sobre a toxina
oriunda de linguiças, com base em experimentos com animais conduzidos por ele
próprio, a partir dos quais fez as seguintes observações: a) a toxina se
desenvolve em linguiças azedas em condições anaeróbias; b) tem a capacidade de
interromper a transmissão motora no sistema nervoso periférico e autonômico; c)
é letal em pequenas doses. Várias teorias foram propostas até que, em 1895,
Emile Van Ermengem (1851-1922), um microbiologista treinado em Berlim por
Robert Koch (1843-1910 – o que isolou o bacilo da tuberculose), correlacionou a
epidemia de botulismo ocorrida em um funeral no vilarejo belga de Ellezelles
com o isolamento de uma bactéria encontrada em alimentos servidos no evento, no
qual 34 pessoas foram contaminadas, incluindo todos os músicos da orquestra
contratada, sendo que três pacientes foram a óbito. Van Ermengem isolou esporos
de um bacilo anaeróbio, o qual chamou de Bacillus botulinus e provou se tratar
de uma toxina ao utilizar um filtrado do cultivo livre de bacilos e esporos em
animais de laboratório, os quais manifestaram sinais de paralisia. Posteriormente, o Bacillus botulinus foi
renomeado, passando a ser chamado de Clostridium botulinum. Na mão dos militares americanos, a toxina
tornou-se a mais promissora arma biológica da Guerra Fria, mas sem muito
sucesso, pois apesar de podermos fabricá-lo, purificá-lo, transportá-lo e
utilizá-lo quando e onde quisermos, felizmente a natureza o fez de maneira
extremamente frágil e instável.

Foi ele também o criador da Klecksographie
a qual conforme Ellenberger (1954/1967) milhares de crianças suíças teriam lido
essa obra de Kerner e brincado com manchas de tinta, dentre elas o próprio criador
do teste de Rorschach. Uma compilação das assim chamadas klecksografias é,
ainda hoje, conservada em manuscrito no Museu Nacional Schiller, em Marback.
Justinus Kerner é descrito como tendo sido “médico e pesquisador
do lado obscuro da natureza” e um verdadeiro “feiticeiro da personalidade”. Ligado
à corrente então muito propagada em seu meio, qual seja, a da “força curadora
do ‘magnetismo animal’”, Kerner chegou a publicar uma obra clássica de
ocultismo e parapsicologia intitulada Die Seherin von Prevorst (A Vidente de
Prevorst), relacionando aparições que se situariam para além “da experiência perceptível
pela inteligência e pelos sentidos”.
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Dr. Justinus Kerner Klecksographie Robert Schumann |
Esse lado poético e talvez espiritual de Kerner tornou-o
preocupado com a estética fazendo-o vislumbrar que uma toxina que causava
doença tão grave, poderia ser usada para tratar doenças musculares. Em surtos
de Botulismo B, ocorridos na Suíça, observou-se que a toxina, além da ação
bloqueadora na musculatura estriada, bloqueava estímulos no sistema nervoso
autônomo, causando supressão da produção de suor por até dois anos em alguns
pacientes. Hoje ela é utilizada com sucesso para casos de hiperidrose axilar e
palmo plantar, diminuindo de maneira eficaz a transpiração excessiva nesses
locais do corpo humano. Mais tarde, o Dr. Justinus, talvez reencarnado, pode
ver suas descobertas utilizadas para tratar a aparência das pessoas: o BOTOX
®.

Mas quando você se distrai, a toxina entra na sua vida
através de um embutido qualquer, uma mortadela ou um enlatado de milho
verde. Você para de transpirar, fica sem
rugas e ensaia parar de respirar, tudo isso em família, logo após o
jantar. A família vítima de botulismo em Santa Fé do
Sul, a 620 km de São Paulo, deve receber alta em poucos dias conforme o médico
responsável Dr. José Maria Ferreira dos Santos, da Santa Casa da cidade. O pai,
Sr. Benedito José dos Santos, 38 , sua esposa Elisete Garcia, 30, e os filhos
Juliana Bruna, 12, e Cristiano, 9, foram
internados com vômito, diarreia, dificuldade de locomoção e visão embaçada. O
soro específico contra o botulismo veio da capital através de uma operação da
Polícia Militar e de outros órgãos públicos. A Secretaria de Saúde do Estado de
São Paulo através do Centro de Vigilância Sanitária publicou determinação
cautelar no Diário Oficial anunciando a interdição do lote 1E0712 da mortadela
da marca Estrela e do lote 300437 do milho verde em conserva da marca Quero até
que a conclusão das análises das amostras recolhidas e encaminhadas pelo
Instituto Adolfo Lutz.
Agradecemos ao colega, Dr. Justinus Kerner, médico
psiquiatra, poeta e magnetizador por sua determinação germânica em não só
descobrir o lado ruim do clostridium como também o lado do bem, do belo e do
verdadeiro, aplicando com Amor o soro que torna a vida mais bela quando a
paralisia dos músculos não mais interessa ao glamour de belas faces
despreocupadas com as mortadelas da vida.